barcelona e o mijo da gaivota

a biblioteca de babel
6 min readJun 17, 2022

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10 anos atrás (que loucura!) eu desci do Aerobús na Plaça de Catalunya, centro de Barcelona. Notei o bolso do meu sobretudo mais leve e imediatamente percebi que minha carteira tinha sido roubada, provavelmente ainda dentro do ônibus. O gentil ladrão (ou ladra — #representatividade) deixou o meu passaporte de presente, mas eu só tinha 20 euros no bolso e nenhuma forma de continuar minha jornada.

Essa é a origin story da minha relação com Barcelona: um primeiro date conturbado. As únicas coisas que pude ver foram um stand de kebab, as ramblas e o teleférico de Montjuïc.

10 anos depois o mundo gira mas volta ao mesmo lugar. Retorno a Barcelona e no mesmíssimo teleférico de Montjuïc noto que perdi o meu cartão do banco. Mas eu já sou outro e Barcelona também.

Algumas cidades são um sonho para viajar. Eu sou apaixonado por Praga e pelas capitais dos bálticos, nas não consigo me imaginar vivendo lá. Com Barcelona é o contrário: eu desesperadamente gostaria de pertencer àquela cidade.

Barcelona é o sonho erótico de um urbanista. Você tem ruínas gregas, castelos normandos, fonte barrocas, ruelas medievais e praias charmosas com água mediterrânea. E é claro, a minha parte favorita: o distrito modernista de L’eixample, perto da Sagrada Família.

Todo mundo já ouviu falar de La Pedrera, da Casa Batlló, do Parc Güell, da lendária catedral ainda em construção e nas criações de Gaudi e outros visionários. Mas ver o distrito modernista com os seus próprios olhos é desfilar por uma coleção de prédios elegantes e distintos. E o mais importante é que essa parte da cidade é um bairro vivo onde as pessoas vivem e trabalham, não uma disneylândia para turistas comprarem souvenir e camisa pólo.

Você senta em um café e observa lindas varandas e vitrines, famílias levando os bebês para tomar sol, casais passeando o cachorro, skatistas se deslocando por ciclofaixas e — sim, turistas. É o cinema da vida real estrelado por habitantes estupidamente atraentes que não se dão conta da sorte de morar num lugar desses.

Barcelona também celebra culturas e subculturas. É fácil encontrar museus homenageando gênios da pintura e arquitetura, exposições com peças raras e memoriais à história do anarquismo. Mas a cidade também abriga os orgulhosamente fora da curva: skatistas, banhistas, nudistas, artistas, góticos, clubbers, ciclistas, metaleiros, comunistas e tatuadores experimentais. Tem até um distrito otaku com a melhor e maior qualidade de lojas que vi na Europa.

Muitos quarteirões na cidade são planejados em forma de cubo, mas as quinas possuem formato trapezoide ao invés dos típicos ângulos de 90 graus. Isso é pensado para permitir a melhor circulação de pessoas e ar pelas calçadas. Tudo é pensado pelo ponto de vista do pedestre, desde as elegantíssimas avenidas diagonais com suas largas passagens e amplas calçadas até as múltilpas faixas para atravessar a rua.

Nos últimos 10 anos Barcelona vem travando uma batalha contra o overturismo e visitantes como eu. A popularidade da cidade e a explosão do airbnb e do #instaturismo levou à explosão de pixações tourists go home. Isso pode ser corretamente diagnosticado como xenofobia latente, mas essa visão não contempla o espectro completo do problema. A classe trabalhadora de Barcelona é a mais afetada pela airbnbnização. Enquanto os proprietários de imóveis podem confortavelmente alugar seus apartamentos para hipsters, milhares de cidadãos são forçadas a pagar alugueis proibitivos ou se mudar. É um fenômeno comum na Europa e em outros destinos populares: os centros urbanos vão ficando cada vez mais desprovidos de moradores locais.

E foi pensando nisso que percebi que eu gostaria de fazer parte de Barcelona não como mero visitante, mas como membro da comunidade. Eu quero viver em um apartamento com varanda, muitas plantas, cacarecos de vários lugares do mundo e a mulher da minha vida. Nos verões iríamos à Costa Brava, nos invernos aos Pirineus. Nós fecharíamos a cortina para fazer sexo e tomaríamos vinho de La Rioja. Nos finais de cinema iríamos para galerias, restaurantes e lojas de designers. Eu me vestiria melhor e *finalmente* falaria aos meus amigos que estou satisfeito com a vida.

Barcelona é o lugar que eu escolheria para morar. Eu não me importo de estar idealizando uma cidade com problemas: eu quero estar lá. É um lugar europeu o suficiente para ser conveniente, mas não europeu demais para ser chato.

Lisboa provavelmente me acha ingrato. A capital portuguesa me deu amigos, emprego, cidadania e um teto. Mas paixão é assim. Você precisa partir alguns corações antes de correr para o seu amor verdadeiro.

Avançamos 10 anos no tempo: um vírus espalhou-se pelos quatro cantos do planeta, o Brasil optou por tornar-se uma distopia fascistropical e eu não fiquei 1 cm mais alto desde que que estive em Barcelona pela última vez. No entanto, fui agraciado com uma das melhores férias da minha vida. Participei do carnaval hipster Primavera Sound (gratificante, exaustivo, caótico) e tive a oportunidade de trocar ideias com pessoas francamente maravilhosas. É engraçado o quanto conseguimos nos abrir para estranhos quando estamos sozinhos e de férias.

Já no segundo dia em Barcelona eu não queria mais ir embora. Eu ainda tinha mais 10 dias de férias entre Estocolmo e a Noruega quando uma paixonite me perguntou “mas por que você está indo para Estocolmo mesmo?”. Ela tinha razão. Por que alguém escolheria deixar Barcelona?

Nesses 5 dias esse lugar me deu tudo. A cidade me trouxe todos os estímulos visuais e neurais que procuro quando viajo, além de uma aula de urbanismo de como uma cidade pode ser repensada.

Mas acima de tudo eu ressignifiquei a forma com a qual eu me vejo. Em Barcelona, ainda que temporariamente, eu me senti ousado, assertivo, confiante e até meio sexy. Eu transei mais nesses dias do que nos últimos 12 meses (calma, pessoal) e saí com a confiança de que se você se achar minimamente atraente e valoroso as pessoas verão isso também.

Mas depois de todas essas lições Barcelona ainda tinha um último truque para me mostrar. Nas minhas últimas na cidade horas fui passear com uma colega americana que conheci em Riga em abril. Ela ensina inglês em Barcelona e faz stand-up comedy, ela é um daqueles deliciosos personagens excêntricos que você só conhece em hostels. Fomos para o Parc de la Ciutadella onde no momento em que eu tirava a foto que ilustra esse texto a gaivota no canto superior direito mijou no meu rosto e roupa. Nós dois rimos desse momento idiota e comentamos que só podia ser sinal de boa sorte.

Não foi boa sorte.

Depois de me limpar e sair do parque, andamos pela praia observando banhistas e tiktokers até a estação do teleférico de Montjuïc. Na hora de comprar o ticket percebi que estava sem meu bendito cartão de débito. Dessa vez foi minha culpa. Devo ter deixado cair quando comprei sorvete. Mea culpa.

Minha lendária colega ficou mortificada. Ela pediu mil desculpas em nome de Barcelona. A gringa não conseguia conceber como tantas histórias negativas aconteceram comigo no mesmo lugar. Eu também não sabia explicar como. A parte engraçada é que eu passei o resto do dia a tranquilizando e falando que, apesar de tudo, eu tinha me divertido imensamente e não tinha nada além de experiências positivas para falar sobre Barcelona.

Como isso é possível? Também gostaria de saber! 10 anos atrás Barcelona me roubou, me obrigando a partir em retirada. Eu fui mijado por um pássaro e fui displicente com as minhas possessões mais importantes. E mesmo assim essa é a cidade que eu mais intensa e passionalmente amo na Europa. Eu quero voltar lá todo semestre (com minhas coisas intactas) e eu quero parecer tão cool, descolado e despreocupado como seus habitantes.

Nesses 5 dias em junho eu me senti numa good trip de cogumelo: um estado onde tudo clicou emocionalmente. E eu vou voltar para Barcelona. Ainda que eu leve outras mijadas de múltiplas gaivotas.

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