cortar para os dois lados

a biblioteca de babel
6 min readFeb 5, 2023

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oi pai, boa tarde! eu sei que isso parece demasiado súbito, mas o seu filho é um cara que Escreve Cartas e sou melhor escritor que orador. eu escrevo porque tenho uma coisa para te falar. para falar contigo, com têca e com quem mais possa interessar.

não adianta ficar esperando a frase perfeita surgir na mente. e ainda não conheço outra maneira melhor do que ser direto, então é melhor arrancar o band-aid de uma vez: eu sou bissexual.

o que naturalmente significa que eu jogo nos dois times: gosto de mulheres e homens.

antes de chegar ao inevitável ponto que levou a essa conclusão, deixa eu esclarecer algumas coisas. o motivo pelo qual eu escrevo ao invés de falar no telefone é porque escrevendo eu consigo ser dono da minha própria história. e isso é importante por razões que vou falar em breve.

e é claro, escrever evita o cringe.

mas não tem cringe, pai. pelo menos no fundo não tem. quando superei a estranheza inicial percebi que ser bissexual é irado. o mundo está mudando e não é difícil encontrar pessoas que genuinamente gostam da nossa vibe. eu me sinto acolhido e confortável. um tanto tímido também, mas isso é natural.

eu compartilho isso porque é parte importante da minha identidade, mas também porque eu vejo o fato de ser bissexual como algo positivo e gostaria que você fizesse o mesmo. de certa forma é um conceito adequado ao cara curioso que eu sempre fui.

e eu estou me divertindo pra caralho.

isso não quer dizer que bissexuais são queridos por todos. nem tudo é “diversão”. existem pessoas que gostam de nós, mas você também pode deduzir que existem aqueles que não curtem. e não estou falando dos intolerantes ou de quem acredita que somos insaciáveis predadores sexuais (quem me dera). estou falando dos jovens no mercado: de pessoas que eu gostaria de pegar.

nem toda mulher deseja caras como eu e nem todo cara se interessa por homens como eu. eu tenho gaps na conversa cultural nos dois lados. não conheço nem a escalação do sport e nem música pop. às vezes é solitário e me sinto inadequado para vários parceiros/as em potencial.

como lidar com isso? chegando à conclusão que não preciso encaixar em nenhum molde. eu posso criar o meu nicho e alguém irá gostar de mim.

mas vamos à parte de ficar com homens. eu tinha ficado com caras em recife e isso não tinha me abalado. na minha cabeça eu continuava hétero. não é incomum ficar com alguém do mesmo sexo e ainda se considerar hétero. tenho pelo menos meia-dúzia de amigos casados com mulheres e que ficaram com mais homens do que eu.

mas é claro, eu estava errado. talvez por homofobia internalizada, talvez por falta de oportunidades, mas eu estava enganado a respeito de mim mesmo.

tudo bem. eu cresci e evoluí. eu me perdôo pelo “atraso”.

com os anos fui conhecendo pessoas bissexuais vivendo relacionamentos saudáveis. alguns com pessoas do mesmo sexo, outras com o sexo oposto. mas todos livres de estigmas.

a chave virou quando mudei para lisboa. nos 3 primeiros anos eu saí com 3 meninas diferentes, todas elas bissexuais. os relacionamentos não vingaram por razões distintas (a primeira se mudou, a segunda me traiu, a terceira era doida), mas todas me falaram a mesma coisa: “se você é bissexual mesmo, você deveria se dar a chance de sair com um cara”.

tive medo. eu já tinha “ficado”, eu já tinha “experimentado”, mas sair é diferente. sair envolve uma dose de romantismo que eu não sabia se seria capaz de sentir. várias questões surgiram na minha cabeça. “serei uma pessoa diferente se tentar pra valer? o que será que vou encontrar além do arco-íris?”.

bem, eu saí com um cara e nada disso aconteceu. continuo a mesmíssima pessoa, graças a deus.

e como foi? muito bom.

no segundo semestre do ano passado eu saí por uns 6 meses com um cara e foi imensamente gratificante. de certa forma eu me apaixonei, eu acho. não estamos mais juntos daquela forma, viramos amigos. mas além de ter feito um bom amigo (o que é um tesouro na vida do imigrante), eu descobri que posso desenvolver sentimentos românticos por homens também.

esse “também” é a parte chata de explicar. as pessoas entendem intuitivamente os conceitos de ser homo ou hétero, mas com a bissexualidade parece que é necessário “provar” alguma coisa. fica parecendo que estamos escondendo algo ou que a história está incompleta. e a última coisa que eu quero nessa fase da vida é ser insincero.

meu temor de falar abertamente sobre isso é porque eu não consigo controlar a forma pela qual eu sou visto e isso me deixa ansioso. alguns vão pensar que sou um homem hétero numa fase “experimental”, outros que sou um gay enrustido. não sou nada disso.

eu friso esse ponto e explico por que é importante ser claro. eu passei a vida inteira saindo com mulheres e essa parte sempre foi fácil. ninguém “se descobre” hétero. nascemos hétero por default. eu sempre soube que gostava de mulheres e nunca questionei.

se essa é a parte fácil, onde está a dificuldade? o problema é que partiria o meu coração se as mulheres com as quais me relacionei pensassem que eu estava enganando a elas ou a mim mesmo. imagina se uma mulher que eu amei achasse que eu estava mentindo? isso seria intolerável.

eu quero ter relacionamentos saudáveis com as pessoas ao meu redor e comigo mesmo. para isso preciso ser honesto sobre a totalidade de quem eu sou.

existe muita coisa em mim que eu rejeito, mas eu não detesto ser bisseuxal. pelo contrário, eu acho legal pra caralho. eu jamais mudaria isso sobre mim.

eu quero gostar de mim, pai. rir das minhas piadas, me admirar. eu quero finalmente curtir a minha própria personalidade!

e a melhor parte é que eu sinto que lentamente estou chegando lá.

estou numa trajetória positiva. 2022 foi um dos melhores anos da minha vida. viajei feito um filho da puta e conheci pessoas fantásticas. de certa forma fui corajoso e o resultado foi que gradualmente estou me tornando o homem que quero ser.

e eu acho que você nota isso. outro dia o meu melhor amigo no brasil comentou o quanto eu tinha mudado nos últimos meses e que estava feliz por mim. dá pra imaginar como é bom ouvir algo assim?!

pai, eu nunca escondi nada de você. você não costuma perguntar por aspectos pessoais da minha vida, mas se tivesse perguntado eu teria explicado. com certa timidez, claro, mas teria sido honesto. nunca fiz nada escondido e não vou começar a fazer agora.

para concluir: eu sei “que você me ama, me apoia e quer que eu seja feliz”. nunca duvidei disso por um segundo sequer. e também não venho “pedir a sua bênção”. eu já me abençoei.

(sim, marina sabe. muitos dos meus amigos também. e sim, você pode falar com quem quiser sobre isso)

sei que você deve ter perguntas e podemos falar sobre elas. mas no momento é importante que você entenda que eu sou o mesmo de sempre. a novidade é que busco alguém que goste de mim pelo que sou — e que esse alguém pode vir de muitas formas diferentes.

a vida é curta demais para dizer não. se uma mulher atraente gostar de mim e for recíproco, eu irei abrir a porta. se um cara atraente gostar de mim e for recíproco, eu também vou me permitir. só assim irei me sentir completo.

e obviamente eu também te amo. muito.

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