estocolmo e a lenda da caneca sagrada

a biblioteca de babel
8 min readJun 24, 2022

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Se você perguntasse qual objeto eu salvaria de uma casa em chamas eu instintivamente falaria meu computador, minha carteira e meu celular. No entanto, essas são apenas as coisas essenciais que preciso para viver. Não é uma resposta particularmente intrigante.

Uma resposta mais sincera seria nomear o meu “objeto essencial”. O objeto que é o meu alter-ego, o pedaço de matéria ao qual eu atribuo status lendário, a coisa que se confunde com minha própria personalidade. E a minha Relíquia Sacra é uma caneca.

Dizer que essa caneca é parte da minha vida não é fazer a devida justiça. Essa caneca é a minha rotina. Todo santo puto dia de meu deus nos últimos 10 anos eu acordo e tomo o meu café neste minibalde. Com ela já tive bons cafés, cafés que me trouxeram caganeira instantânea, cafés que esfriaram, cafés que queimaram meus beiços, que me trouxeram ansiedade, euforia, picos súbitos e intensos de inspiração, insônia, paixonites e tremeliques. Quem fala que o cão é o melhor amigo do homem nunca teve uma caneca como a minha. No meu lugar de fala como romântico acho que posso me dar o exagero de admitir que essa caneca é um dos amores da minha vida.

Se você já dormiu comigo (primeiro de tudo: obrigado) você provavelmente já viu a bendita caneca. Ela é azul-marinho e dourada, completamente coberta com a bandeira da Suécia (que, convenhamos, tem mesmo um belo design). Eu a comprei 10 anos atrás na Gamla Stan de Estocolmo por esse simples motivo: eu a achei bonita. Era um souvenir que me chamou a atenção e resolvi presenteá-la a mim mesmo.

Sendo que a caneca não se tornou um mero objeto de decoração. Ela me incumbiu de uma missão divina. Ali foi o momento em que resolvi que iria viajar o mundo colecionando outras canecas. Eu almejava a ter uma sala repleta de prateleiras onde poderia expor os trofeus das minhas aventuras. Na minha perpetuamente fértil imaginação, eu mostraria aos visitantes canecas de diversas partes do mundo e contaria uma história interessante sobre cada uma delas.

O engraçado é que essa é provavelmente a fantasia que mais se aproximou da minha realidade. 10 anos se passaram e eu tenho cerca de 150 canecas. O número é apócrifo porque parei de contar no Brasil, onde estimo que tenha deixado cerca de 120 canecas. Eu as tinha em exposição em prateleiras no meu quarto em Recife e confesso que ficava mesmo bonito. O fato de que eu podia olhar para aquilo todo dia me dava uma imensa sensação de orgulho e dever cumprido. Um sentimento de “Isso sou eu. E eu consegui o que queria”.

Não fui para 150 países. Pelo menos ainda não. Grande parte da coleção foi presente de familiares e amigos. Nunca estive na Índia, em Luxemburgo ou no Panamá, mas tive pessoas que lembraram de mim quando estiveram nesses lugares. Estados Unidos, Canadá, Austrália: nunca pisei nesses lugares mas tenho um pedacinho deles no meu quarto. Agradeço também ao meu pai por ter me trazido canecas de Montevidéu — cidade que nunca fui — e à minha grande amiga Thaís que me trouxe duas exuberantes canecas da sua aventura tailandesa — país que irei em dezembro.

E é claro, tem as canecas que eu mesmo comprei. Sei da história de cada uma delas. Por exemplo: em 2016 viajei por 8 países da Europa e tive o desafio de trazer 13 canecas para casa enroladas em meias. Entre elas há uma gigantesca caneca de cerveja que um judeu americano roubou para mim no bar de um hostel em Munique. O meu semestre na Colômbia rendeu uma meia-dúzia de canecas, assim como as vezes que fui ao Chile. Minha jornada pela Ásia em 2019 me trouxe canecas de Hong Kong, Macau, Seul e uma caneca de Mao Zedong de Pequim. Do Japão — meu país favorito no mundo inteiro — devo ter umas 10. Tenho uma coleção de chá que comprei em Asakusa, uma caneca com design tradicional de Kyoto e uma modernista de Osaka. Confesso que por gostar tanto do Japão quebrei minha própria regra: comprei uma caneca de Sapporo sem nunca ter estado lá. Essa é a minha caneca aspiracional porque toda vez que olho para ela lembro que Hokkaido é um lugar que quero ir em breve.

Estou morando na Europa há quase três anos e já tenho mais de 30 canecas. Tenho canecas das semanas que passei em Istanbul e Moscou e canecas que trouxe do verão em que estive na Noruega. Tenho canecas de Malta, Dublin, das três capitais dos Bálticos, do Porto, da Transilvânia, de Berlin, dos Alpes Suíços, do Vaticano, de Barcelona e das duas vezes que estive em Roma. Tenho uma caneca de Pisa que roubei de alguém que eu detesto e tenho uma caneca de Londres que meus roomates trouxeram de presente.

Se eu fosse contar a história de cada caneca eu não saíria daqui e esse texto ficaria um flex monotóno. Eu quero usar as canecas para falar da passagem do tempo e de retraçar objetivos de vida.

Como mencionei, 10 anos se passaram desde que fui a Estocolmo. Escrevo esse texto no celular sentado em um banco na beira do canal enquanto observo pessoas pescando e andando de caiaque. Estocolmo está localizada em uma série de ilhas e o centro da cidade está sempre perto da água. A qualquer momento do dia você pode pegar táxis-barco para navegar e explorar o arquipélago.

É engraçado o quanto o recifense imediatamente associa qualquer lugar com ponte ao Recife, mas de fato existe algo no centro de Estocolmo que lembra o Recife antigo. Deve ser a magia de cruzar pontes elegantes e observar prédios históricos na beira de rios e canais. Me senti em casa mesmo estando estupidamente distante cultural e geograficamente.

Minha casa, obviamente, é Recife. Nunca poderá ser diferente por mais que eu me mude e por mais que eu esteja determinado a continuar longe. Mas não era assim que eu me sentia 10 anos atrás quando estive em Estocolmo. Eu era outra pessoa e o mundo também era.

Como um adolescente no primeiro semestre da faculdade no início da longínqua década de 2010, eu era uma social-democrata. Eu acreditava que o melhor que poderia acontecer ao planeta era copiar o modelo nórdico de capitalismo com um estado de bem-estar social robusto e generoso. Eu acreditava na distribuição de renda dentro dos moldes do sistema e advogava pelo incrementalismo. Eu era, em outras palavras, jovem e burro.

Ainda sou jovem e burro mas uma sucessão de crises econômicas, políticas, sanitárias e morais da última década tornaram evidentes os rombos na social-democracia nórdica. O capitalismo, por mais gentil que seja, nunca vai concretizar a sociedade verdadeiramente livre e igualitária que eu desejo. E observar a Suécia pelas minhas lentes pós-capitalistas (seja lá o que isso signifique) foi uma experiência fascinante.

Estocolmo, como você pode imaginar, é mesmo linda. Dessa vez fui no verão e foi engraçado ver o quanto a cidade era mesmo azul-marinho e dourada — as cores da bandeira. O azul está por todos os lados: tanto na água onipresente quanto na fachada dos prédios. Já o dourado constante é cortesia do sol de junho que brilhava até onze da noite.

Essa segunda visita me deu a oportunidade de criar novas memórias. Na primeira vez eu tinha ido com uma parceira que sequer gostava de mim (e o sentimento era mútuo) e em todas as minhas recordações eu estava sozinho. Eu fui no inverno, então lembro de ter brincado com a neve pela primeira vez e que escurecia às três e pouca da tarde. E só.

É claro que isso me fez pensar na passagem do tempo. As minhas canecas — o meu maior tesouro material, essa parte indissociável de mim —hoje estão guardadas em caixas embaixo da cama da minha avó. Eu optei por ir embora e não pude trazê-las comigo. Não sei como ou quando elas terão espaço na minha vida. Da mesma forma que não sei como acomodar meus amigos e familiares recifenses nas dores e delícias de morar a um continente de distância. Fui abençoado com a oportunidade de começar de novo e ao mesmo tempo sinto falta de tudo que deixei para trás.

Sou grato pela oportunidade de ter voltado e dado um novo significado a Estocolmo. Fiquei ainda mais grato e surpreso quando, ao caminhar pela mesma Gamla Stan, encontrei a caneca de 10 anos atrás. O design era idêntico e típico de loja de souvenir. Óbvio que comprei essa segunda caneca. E mandei uma foto para amigos e familiares — que imediatamente reconheceram do que eu estava falando.

A segunda caneca, a gêmea, é também um símbolo. Ela não é uma réplica perfeita. Ao comparar as duas canecas, nota-se que a irmã mais nova é um pouco menor e feita com um material mais leve.

E isso, é claro, é uma metáfora magnífica. Você não pode reproduzir uma memória. Você não pode tomar banho duas vezes no mesmo rio porque você já é uma pessoa diferente na segunda vez. Da mesma forma, você não pode ter uma caneca idêntica porque isso não existe. A caneca é outra, Estocolmo é outra, você é outro.

Coisa engraçada aconteceu poucos dias após Estocolmo quando cheguei em Oslo e liguei para minha vó para informá-la que tinha atingido a marca de 40 países visitados. Para mim isso é uma medalha de honra e um trofeu de privilégio, claro, mas a reação da minha vó foi de espanto. Ela respondeu “que bom meu filho! mas quando você vai cuidar da sua vida?”

Eu quis dizer que não faço ideia do que ela está falando. Não tenho um plano para a vida e desconfio de todos que dizem que têm. Subsisto na incerteza onde o bendito capitalismo capitaneado pelos nórdicos dificulta que eu “cuide da vida”. Adquirir imóveis parece uma piada de péssimo gosto, construir uma carreira parece um desafio intransponível e ter uma parceira e filhos parece algo que vou continuar eternamente querendo.

Mas o que minha avó não entende é que estou cuidando da vida da melhor forma possível. Ou pelo menos dentro dos meus próprios e confusos termos. Sempre que posso faço o que amo: eu viajo para conhecer lugares e pessoas. Eu estou matando a curiosidade de infância de explorar o mapa-mundi e completando a missão que me incumbi 10 anos atrás quando comprei minha primeira caneca em Estocolmo.

E vou continuar fazendo isso sempre que puder. 40 países não são o suficiente. 150 canecas também não. A primeira caneca continuará comigo para sempre. A minha avó também. O afeto que sinto pelos amigos e familiares que caminharam junto a mim, também. Minha cidade também. Tudo cabe em uma mala e o que não couber levo na memória.

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