Na companhia de estranhos Episódio 2: Uma filha de Iemanjá na Argentina
--
Na companhia de estranhos é uma série de contos sobre viajar se hospedando na casa de desconhecidos. Algumas dessas histórias são verdadeiras, outras completamente mentirosas. Outras são uma mistura de ambas.
“Olha isso aqui, Pedro. Você não acha que eu estou gorda agora?”
E Pata esticou a mão para mostrar o enorme celular com uma foto sua de biquini branco na beira de uma piscina. A pergunta era, claramente, um jogo. Um truque de narcisismo de uma mulher ciente da própria beleza. Magra, 23 anos, curvas bem definidas, pernas longas, pele bem negra, lábios grossos, cabelos pretos longos. Ela tinha um daqueles rostos em forma de coração, maças da face salientes, um queixo longo e fino e uma derme que nunca viu acne na vida. Pata era o tipo de mulher que sabe que é bonita. Ela se alimentava de elogios no café e retribuía com falsas esperanças. Não por maldade ou pelo prazer em enganar os outros, Pata simplesmente gostava de se sentir bela. Ela se orgulhava da sua aparência a ponto de confundir sua personalidade com ela. Personalidade é difícil de se cultivar, beleza, contudo, é bem simples. Umas fotografias no ângulo certo, umas roupas bem escolhidas e sorte na loteria genética: pronto, sua personalidade agora é bonita.
“Não, claro que não!” Eu respondi com um meio sorriso enquanto devolvia o celular, consciente que o meu papel nessa encenação era falar o óbvio.
“Você é gentil demais. Eu engordei desde que cheguei nesse país. Ouviu só? Engordei! Agora eu peso 52 quilos! Eu nunca pesei tudo isso! A comida não é boa aqui! Empanada, macarronada, picada, chorizo, churrasco… Tudo isso engorda, tudo isso faz mal! Em Hyderabad eu fui vegetariana por seis meses. Ouviu só? seis meses! Tudo em nome da saúde! Sa-ú-de! Vocês gostam muito de comida mas o meu apetite é pequeno”
Acenei com a cabeça enquanto ouvia o discurso que já conhecia. Me incomodava um pouco que Pata se referia ao grupo eu + argentinos como “vocês”, como se sul-americano fosse tudo a mesma coisa, mas seria arrogante corrigir. Ela não faz por mal, concluí, afinal o conhecimento da maioria dos brasileiros sobre a África é mínimo. Aprendemos na escola que a história da África se resume à colonização, escravidão, exploração e miséria. Impérios? Só houve o egípcio. História contemporânea? Só o apartheid importa. Alunos de colégios construtivistas modernosos aprendem que brasileiros e africanos somos povos irmãos separados por um oceano, filhos de uma cultura compartilhada e de um histórico de escravidão e desigualdade. E enquanto isso é meia-verdade, também não deixa de ser uma meia-mentira. O Brasil e a África, de fato, possuem semelhanças, mas “a África” não é um conceito vago, e sim um continente de 54 países. Qual a relação da cultura do Brasil com as ruínas romanas da Líbia, com o sultanato de Zanzibar ou com a monarquia Zulu? Nenhuma. Pata acreditava que brasileiro, argentino, chileno, uruguaio eram todos a mesma coisa e eu perdoava porque para o brasileiro comum a África é um país só.
Mas Pata e eu crescemos em regiões que podem ser chamadas de irmãs. Ela, cujo nome completo era o estupendo Chibarameze Awoniyi Oladapo Oduwole, era de Ibadan, terra dos Iorubás, na Nigéria. E eu, apesar de definitivamente branco e provavelmente descendente de pessoas que lucraram com a exploração de Iorubás, cresci no nordeste brasileiro. Quanto mais conversávamos, mais nos surpreendíamos com as semelhanças culturais. “Nagô” foi o nome dado pelos portugueses aos Iorubás vendidos como escravos na costa nordestina, muitas das tradições e do folclore do nordeste têm relação direta com essa parte do continente africano. Nós gostávamos de conversar sobre os orishás e de se divertir com o quanto a pronúncia era parecida. Xangô, Iemanjá, Ogun, Oxóssi: esses nomes me eram familiares, apesar de saber tão pouco sobre eles. Pata ficava feliz em explicar “Eu sou filha de Yemojá, eles dizem que nós gostamos de luxo, mas quem não gosta não é mesmo Pedro? Se por acaso eu ver uma coisa bonita eu não vou apreciar? É caro que eu vou! Se eu ver uma roupa bonita eu não vou querer usar? Por certo que vou. Se eu for sair eu não vou me maquiar ou escolher uma roupa bonita? Lógico que vou! Nós filhos de Yemojá também somos corajosos e protetores. Eu sou cristã, ouviu Pedro? Acredito no Nosso Senhor Jesus Cristo mas eu sei que você não deve mexer com os Orishas! Nunca desrespeite os Orishas! Você não vai querer provocar a fúria de um Orisha! E também acredito que Yemojá me protege, ah ela me protege sim!”
Um etnólogo francês chamado Pierre Verger dedicou sua vida a estudar a influência da cultura Yorubá no Brasil e morreu admitido ao grau de babalawo aos 94 anos, em Salvador. Verger interpretou os Orishás a partir da psicologia analítica, explorando a ligação do povo de santo a uma identidade cultural definida por seres ancestrais. De acordo com Verger, cada um herda do orixá de que provém suas marcas e características, propensões e desejos, tudo como está relatado nos mitos. Eu não vivenciei esse sincretismo cultural na minha educação ou na minha formação, mas o fato que essas crenças resistem até hoje me fascina. Eu não entendia nada disso mas sentia vontade de aprender. Falei para Pata de uma cidade no Brasil com grande influência Iorubá e ela disse “Salvador? Ah, nós conhecemos Salvador. Nós conhecemos aquela música que canta ile aiyê. Isso significa paraíso eterno em Iorubá”. Esses pequenos momentos eram a melhor parte: aprender sobre uma cultura que não era minha mas que morava na casa do lado.
Ela contava tudo isso da pequena varanda da sua casa em um apartamento de dois andares na Avenida 24 de Septiembre. Essa não era a área mais bonita de Córdoba, mas era convenientemente perto da escola de idiomas onde trabalhava. Fluente em inglês e educada nos melhores colégios britânicos de Ibadan, Pata conseguiu o emprego de professora na primeira entrevista. Quando ensinava, tinha o cuidado de dar às palavras uma pronúncia europeia para a melhor compreensão dos seus pupilos da classe média argentina, mas ao falar comigo, seu pesado sotaque nigeriano subia à superfície e ela se sentia igualmente confortável com outra entonação. Pata não falava nenhuma palavra de espanhol e eu perguntei como ela sobrevivia nesse país. Ela tinha seus truques. Nunca se perdia, nunca passava por problemas. Precavida, destemida e segura, ela tinha o dom de se comunicar diariamente com pessoas que não falavam sua língua. “O que você precisa aprender em espanhol é gracias, señor e dios te bendiga, señora” disse.
Ela estava no seu quinto mês em Córdoba depois de ter estudado em Hyderabad e trabalhado no Catar e no Cairo. “A Nigéria é impossível. Não tem emprego!”. Essa era sua primeira vez na América Latina, segundo ela um continente estranho. “Vocês têm muitos feriados. Quando é que vocês trabalham?! Todo dia é um feriado aqui! Pelo menos vocês tomam banho”. Disse com um desdém mal-disfarçado. “Mas a comida aqui não é boa… meu corpo não precisa de muito, sabe Pedro? eu tenho um metabolismo diferenciado. Bastante diferenciado. Se eu comer uma banana e um inhame eu consigo passar o resto do dia satisfeita. Minha mãe diz que isso é sorte. Mas vocês não sabem a hora de parar! A comida na Índia é deliciosa mas aqui tem muita gordura. Eu sinto falta da Índia”. Pata estava na Argentina para juntar dinheiro e ir para a Europa. “Ainda não sei o que eu vou fazer. Talvez trabalhar como modelo, talvez trabalhar com marketing, talvez não fazer nada. Ainda não sei. Mas vou para a Europa no próximo ano, disso estou certa. Eu vou entrar em forma e vou para a Europa”.
A relação dessa estrangeira com a Argentina era estritamente de negócios: me dê seus pesos e eu os converterei em dólares para ir embora. Ela estava de passagem por alguns meses e eu de turista por algumas semanas. Mas diferente da nigeriana, eu sempre quis conhecer a fundo o gigante vizinho, a nação que se auto-denominou a mais europeia das Américas. Se o Brasil é o irmão festeiro e extrovertido, a Argentina é a prima reservada e pedante. Existe um charme irresistível nessa mistura de alta intelectualidade e decadência que é a Argentina e eu fui totalmente seduzido por ele. Córdoba era a minha terceira parada na Argentina depois de Buenos Aires e Rosário, em uma viagem pela melhor América que ia de Montevideu a Guayaquil. Eu estava pronto para viver o meu próprio diário de motocicletas da classe média, mas por enquanto só tinha passado por cidades grandes. A grande aventura ainda estava por vir: o norte indomado, árido e indígena: Salta e Jujuy, essas províncias mágicas de montanhas secas, ar rarefeito, vento frio, casas de adobe, cânions e vilas coloniais. Ou pelo menos essa era a minha fantasia.
Passeando pelo centro de Córdoba, a visão lembrava a miséria brasileira e a elegância clássica da Europa. Miséria elegante, a propósito, é a definição do dicionário de “Argentina”. A arquitetura colonial ibérica não é muito diferente das igrejas e catedrais de meu país Pernambuco, mas Córdoba com suas avenidas largas e árvores frondosas tem elementos ausentes em um Recife cada dia menos bonito. A pobreza, a sujeira permanente, o pessimismo fatalista nas conversas e a descrença nos políticos contudo, é idêntica. No final das contas somos todos sulamericanos filhos da mesma mãe.
Para a minha anfitriã, contudo, nada disso despertava curiosidade. Eu me admirava com sua capacidade de não absorver nenhum dos elementos locais porque ela era imune à atração que a Argentina tinha em mim. Ela tentou me aconselhar em vão “Nunca discuta política com os argentinos porque eles não vão parar de falar disso” sem saber que esse é um dos meus temas favoritos mas algo que disse depois ficou na minha memória “Se você gosta tanto daqui, por que não fica por um tempo? Eu posso falar com meu chefe, você com certeza conseguiria emprego na escola”. Eu estava apenas de passagem pela Argentina, mas me senti tentado a ficar. No último dia em Córdoba, horas antes de pegar o ônibus para Salta, a filha de Iemanjá pegou meu celular e disse “Me adicione no Facebook. Fale comigo quando eu estiver na Europa e você vai ver o quanto eu vou estar mais magra”. Sua foto de perfil, é claro, era aquela de biquini branco na beira da piscina.